quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Rosas e formigas

Uma Rosa
de Carlos Drummond de Andrade


Uma rosa, em dia de chuva,

é uma rosa:

espalha em torno uma presença

luminosa.


Hoje chove por aqui. E realizo um sonho luminoso. O de colher uma Rosa no meu Jardim. Ganhei a muda de presente de uma amiga. De prima, fiquei tensa. Já havia tentado muitas vezes plantar rosas por aqui. Mas qual o quê? As formigas sempre foram implacáveis. Rosas são exigentes. E são lindas! Seu aroma é considerado por muitos o mais sutil. Sua essência a mais mágica. Mas de que me adiantam rosas que não posso cheirar? E o medo de me intoxicar? Como saber se aquele cheiro é o cheiro da flor mesmo ou é uma molécula de óleo essencial na qual se imiscuiu algum desses venenos loucos criados para matar algum ser? Como posso ser feliz oferecendo uma Rosa contaminada? Plantios comerciais de Rosas só são viáveis com o uso de muito adubo químico e, por conseguinte, muito veneno. Como amo Rosas, sempre desejei ter a minha própria, aqui em casa, sem veneno, cheia de vida, para eu poder cheirá-la com gosto, poder fazer preparados aromatizadores do ambiente, poder comê-la. Sim, Rosas são comestíveis. Mas nunca as Rosas que vêm de plantios comerciais. Se nos alimentos (que são cultivados para serem comidos), tem-se coragem de aplicar venenos (substâncias criadas para matar)... imagina nas flores que, a princípio, não serão comidas! Existem leis que estabelecem o tempo mínimo entre a colheita de um alimento e a última aplicação de veneno. Em regra, ninguém liga muito pra isso. Tem veneno que é, inclusive, aplicado depois da colheita, os chamados tratamentos de pós-colheita.

A formigas são seres que realmente me intrigam muito. Tenho várias espécies por aqui. Pequenas, grandes, marrons, pretonas, rapidinhas, miudinhas e lerdinhas. Tem as que fazem um ninho nas profundezas da terra e outras que os constroem à moda dos pássaros, em lugares inusitados no alto de muros ou árvores. Cada tipo de formiga tem uma função diferente. As que mais assustam os seres humanos são as formigas cortadeiras. Trabalhadeiras incríveis, dia e noite picam folhas, levam para alimentar suas colônias de fungos dentro da terra. Geram uma vida incrível de micros-seres no solo. Cavam túneis por onde a água penetra na terra reabastecendo raízes, lençóis freáticos e mananciais. Quando abandonam o ninho depois de mais um ciclo completado, deixam para trás a terra mais fofa e fértil onde qualquer coisa que se plante prospera. Mas, para fazer tudo isso, precisam de comida. E a comida delas é um fungo. E para cultivar o tal fungo, precisam de folhas. Sem folhas, sem formigas. Mas mais do que isso, elas nos mostram o que estamos fazendo errado. Elas não cortam qualquer coisa de qualquer jeito. Elas podam para estratificar o sistema, podam plantas fora do lugar, podam plantas que completaram seu ciclo ou que estão muito tristes e querem suicídio... As formigas não fazem nada disso em troca de um salário ou de férias remuneradas. Fazem porque sabem que têm que fazer. Não trabalham para receber elogios, nem aparecer nas notícias dos jornais. Trabalham por um senso de dever, para cumprir sua função que é a de gerar um solo rico onde novas florestas poderão se estabelecer, renovar e limpar sistemas muito bagunçados.

Mas não são todas as formigas que cortam folhas. Há também as formigas que são predadoras dos bichinhos que comem as folhas! Há outras que vive para cuidar das plantas. Como essas que encontrei nas folhinhas novas do ipê do cerrado. Zelosas, andavam para cá e para lá, tomando conta das folhinhas. Quem sabe se alimentem de algum exsudato que a planta produza para sevá-las. Passam o dia aí, andando para lá e para cá, com suas anteninhas fuçando tudo ao redor. E as folhas crescendo vigorosas e felizes.




Mas formigas e Rosas... Rosas e formigas...
Pois é, meu lugar não deve ser muito apropriado às Rosas... sombra demais, fertilidade de menos.
O que fazer com as formigas? Poucos pensam duas vezes antes de utilizar algum produto químico para eliminá-las. Eu desejo o trabalho delas. E não quero andar para trás. Quero sempre mais vida e nunca menos vida como resultado da minha intervenção. Acabar com elas seria ter no mínimo duas espécies a menos no jardim: a formiga e o fungo do qual se alimentam. Não posso abrir mão.
Às vezes é necessário adiar ou desistir de algo. A vida é assim.
Às vezes não. Ou às vezes, se contentar com o que dá pra ser.
Não sei se conseguirei ter Rozeirais por aqui, mas dei uma burlada no sistema e plantei a muda de Roseira em um vasão bem grandão com muita terra bem adubada, coloquei em lugar onde o sol chega direto algumas horas por dia e...
Hoje colhi uma linda Rosa para meu altar.
Gratidão.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

As Flores na Jardinagem Agroflorestal

Visitei um belíssimo Jardim Agroflorestal com um grupo de jovens. E perguntei: que diferenças vocês percebem entre esse jardim e os outros jardins? O Rafael respondeu: Esse jardim aqui é mais verde. Bingo!

Mas... Jardim é quase que sinônimo de Flor! As pessoas todas me pedem flores. Minha filha, outro dia, me disse que meu Jardim não era um Jardim porque não tinha flores! Ohhhh... Fiquei tão chocada que fui ver o que estava acontecendo.

Primeiro, me dei conta de que fazia sentido essa sensação que ela tinha de não ter flor no Jardim. Na verdade, eu não havia me preocupado muito em plantar flores até aquele momento. Já acho tão lindo tanto tom de verde! E minha prioridade era criar mais vida no meu lugar. As flores ornamentais clássicas, essas que constam nos livros e manuais, são pouco eficientes na produção de biomassa e via de regra são espécies muito exigentes e de clareira. Utilizam toda sua energia para a produção das flores. Precisam de muita fertilidade no solo e de área aberta com sol na cabeça. Muitas precisam ser replantadas periodicamente. Deixam um saldo negativo da sua passagem pelo Jardim. Por outro lado, eu quero usar os recursos do meu lugar. Quero perenidade e facilidade. Quero produzir minhas próprias mudas e sementes. Fora de cogitação usar adubos químicos! Preciso otimizar meu tempo e minha energia. Não quero ter que ficar replantando as flores o tempo todo. Quero que o Jardim se renove abundante e naturalmente com as espécies mais adaptadas a ele. E também, preciso de muito verde para fazer muita fotossíntese. Para isso, preciso ocupar de forma eficiente todos os "andares" do meu Jardim. Logo, não tenho muitas dessas flores ornamentais tradicionais por aqui.

Ainda assim, resolvi descobrir como plantar mais flores no Jardim. Fui ao quintal ver onde eu poderia plantá-las. Qual o quê! Havia tantas flores que corri para pegar a câmera. Flores de várias cores. Mas... espalhadas... uma aqui, outra acolá, entre muito verde e misturadas entre si. Olhos acostumados com jardins onde as flores ficam amontoadas aos montes, talvez tenham que se esforçar um pouquinho para percebê-las. Então... o primeiro desafio é o do olhar. É o de desacostumar dos padrões convencionais de Jardim e se encantar com as pequenas surpresas escondidas entre as folhas e o solo coberto de serrapilheira.

Em sentido horário: amor-agarradinho, flor lilás de nome deconhecido e cosme!
Além disso, o meu não é um Jardim qualquer, é um Jardim Agroflorestal. Quero comida, quero frutas. O bom é que as flores são justamente o órgão sexual das plantas. Sem flores, não há frutos. São belas assim não é para nos agradar, aos humanos. Mas sim, para atrair os bichos que as polinizarão. Plantas e polinizadores coevoluiram com precisão milimétrica. As flores polinizadas por seres noturnos (como mariposas e morcegos) geralmente são brancas e soltam seu perfume à noite! Será que foram os polinizadores que fizeram com que fossem brancas por selecioná-las ou as flores é que se tornaram brancas só para atraí-los? Quem sabe as duas coisas juntas ao mesmo tempo. Flores vermelhas geralmente são polinizadas por aves e flores amarelas por insetos. Flores brancas que abrem de dia, como as flores da pitangueira, são polinizadas por abelhas diversas. Um engenharia muito sofisticada, altíssima tecnologia de formas, cores, aromas e sabores. As flores desenvolveram mecanismos elegantérrimos para atrair seus polinizadores. O néctar, por exemplo, existe somente para alimentar os polinizadores. A recompensa é boa: a continuidade da espécie. Esse talvez seja um dos exemplo mais evidentes de que a regra da natureza é o amor incondicional e a cooperação. Aposto que o polinizador polinizaria a flores mesmo que não houvesse recompensa em nectar. E aposto que a flor produz néctar não para seduzir, mas por gratidão. Taí uma mudança de visão, de perspectiva. Vão me dizer que não é científica... é, fui geneticista, eu sei que não é científica. Mas algo em mim diz que isso faz perfeitamente sentido. Se não científico, é certamente poético.

Em sentido horário: poinsétia (que chamo Natal), pimenteira, primavera e goiabeira

Na real, em um Jardim Agroflorestal há milhões de flores. Mas a maior parte delas é quase invisível aos olhos dos distraídos. Flores mínimas, lá no topo das árvores ou no canteiro de hortaliças e medicinais. Flores rápidas, efêmeras. Aprender a apreciar os detalhes microscópicos dessas micro-flores pode ser um exercício bastante inspirador.

Em sentido horário: alpínia, falsa melissa (Lippia alba) e coentro

E há também aquelas flores por todos desprezados. As flores das terríveis ervas daninhas. Dos matos. Tão detestadas. Pois muitas delas têm flores que são pura poesia e obras de arte. Veja essa da foto abaixo, amarelo com laranja. Quanto detalhe! Quanta delicadeza! Os livros de identificação de "plantas daninhas" diz que ela é terrível. Asclepias curassavica é o seu nome científico. Algodãozinho-do-campo é um de seus muitos nomes comuns. Eu a chamo de avatar porque o fruto parece o da árvore do filme. Uma paina que sai voando carregando delicadamente a semente. Segundo o livro, ela é altamente tóxica para o gado. Produz um glucóside que causa síncope respiratória, perturbações no aparelho digestivo e morte (em menos de 1 hora!). Basta uma grama por kg de peso vivo do animal! Tudo bem que para juntar esse tanto de grama, o boi tem que comer um tantão dessa planta. Cada indivíduo é tão leve como pluma. Como era de se esperar, ela é medicinal: purgativa. Suas raízes são usadas para matar bernes! Ufa, ainda bem que não tenho gado no quintal e aqui elas encontram abrigo contra o medo dos que a temem.

Em sentido horário: estrela-do-meio-dia, pitanga (que, óbviamente, não é uma flor!) e algodãozinho-do-campo

Mas, já que quero comida, tem também as flores comestíveis, como a capuchinha, a flor da abóbora, da bananeira e do quiabo, o malvavisco, o girassol e a roseira. Quanta riqueza para os olhos e para o paladar!

Depois que as árvores frutíferas se tornam adultas, a maior parte da área do Jardim Agroflorestal fica na sombra. E que bom! Em tempos de mudanças climáticas, nada como viver em um lugar 5oC mais fresquinho do que o resto do mundo. E nenhum organismo é tão eficiente na produção de biomassa quanto são as árvores. O que fazer então, se grande parte das flores gosta de sol? Descobrir, experimentar e abusar das que gostam de sombra ou meia sombra. Por aqui tenho helicônias, alpínias e marias-sem-vergonha. Pesquisa contínua para descobrir outras e mais e deixar meu Jardim Agroflorestal cada dia mais florido!

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A Primavera Chegou!


Fiquei alguns dias sem ir ao quintal. Estudando e escrevendo sobre Educação Ambiental e Agricultura Familiar.
Lá estava eu, escrevendo aquelas coisas todas sobre o Planeta, sobre cuidar da vida, sobre estar em conexão com a natureza, sobre plantar e manejar... e sentada dias seguidos em frente ao computador. E me lembrei do Nelson, amigo agrofloresteiro, quando o ouvi falar sobre o quanto o computador desenergiza a gente. A mim, além de desenergizar... o computador e sua radiação deixam mal humorada. Quando começo a implicar com todo mundo em casa, já sei que passei dos limites e que tenho que ir ao quintal. Foi minha filha mais velha que me mostrou, muito sutilmente: "Mãe, faz tempo que vc não vai para o quintal, né?". 
E hoje fui.
Fui matar as saudades.
Plantei uma muda de guaco, podei margaridão, guiné e ipê de jardim e piquei o material sobre o solo, reguei.
Ah... como seria possível descrever o tamanho do prazer? A alegria de estar ali. A alegria do reencontro. A alegria de me sentir parte. A energia da Mãe sob meus pés. O serviço.
Ao fazer o buraco para plantar a muda de guaco (feita com um galhinho que o Cacai, amigo músico, me deu), dei de cara com uma terra fofa, gostosa e fácil. Pensei comigo mesma... já está um quintal para menina manejar. Esforço quase zero para cavar a terra. Quando cheguei, praticamente não havia solo nesse lugar. Restos de entulho (da construção da casa provavelmente) foram cobertos com uma camada de terra vermelha onde se plantou grama, fazendo as vezes de jardim. Agora, tinha virado terra fofa e marrom. Resultado do trabalho dos bichinhos do solo que alimentei durante os últimos anos. Pois são os bichinhos do solo que fabricam solo. Aliás, James Lovelock e Lynn Margulis nos re-ensinaram aquilo que os povos que vivem em contato com a natureza sempre souberam: que a Terra é um organismo vivo e que todas as condições para a existência da vida na Terra foram criadas, e são mantidas, pela vida.
Quando olhei ao redor, vi flores de tantas cores...
Vi até uma fada de vestido lilás... e correndo fui buscar a câmera. 


De repente, o canto insistente dos passarinhos fez com que eu me desse conta: é Primavera!!! Logo logo, as chuvas darão início aos plantios. E sairei, sementes no bolso, espalhando por todos os cantos do quintal sonhos de germinação.
Quando chega a primavera, é hora de tirar tudo dos armários, das gavetas e dos cantinhos escuros, deixar ir o que passou, abrir espaço e começar novos ciclos. É hora de agir. De colocar em prática os sonhos que acalentamos no inverno. Hora de começar novos projetos, de plantar sementes. Depois, cuidar com zelo para vê-las brotarem, crescerem e frutificarem.
Começo essa Primavera cheia de esperanças.
Começo também com um compromisso comigo mesma.
O de honrar minha essência jardineira e todos os dias mexer na terra, plantar, manejar, cuidar. Quem sabe assim eu consiga me tornar um ser querido por Mãe Terra e reencontrar cada dia mais a minha essência sagrada que me diz que também sou um ser biológico. E assim sendo, como todos os outros, tenho que cumprir minha função no ciclo da natureza, no ciclo da vida.
Ernst Götsch, meu amigo e mestre escreveu assim*:
"Aprofunda-te na matéria! Abre os teus sensos! Tenta perceber as formas dadas pela própria natureza! E tu chegarás a criar laços mais íntimos com ela. Isto acarretará mais sensibilidade nos tratos, nas relações com nossos irmãos (seres vivos) no campo e na floresta, bem como nas relações entre os seres humanos. Assim, a agricultura voltará a ser o que ela era, no sentido da palavra: cultura. Uma tentativa culta de conseguir o necessário daquilo que precisamos para nos alimentarmos, além das outras matérias primas essenciais para nossa vida, sem a necessidade de diminuir e empobrecer a vida no lugar, na terra."
Ah... como Ernst tem razão.
Quanta satisfação e energização em fazermos aquilo que é o que viemos fazer. E é assim que me sinto quando estou no quintal, cuidando das plantas, do solo e da vida. Energizada novamente para encarar mais algumas horas de teclado e assim, poder seduzi-los a fazer o mesmo. 

*na cartilha "Homem e Natureza - cultura na agricultura", que ele escreveu em 1995 para o Centro de Desenvolvimento Agroecológico - Sabiá. Para conhecer Ernst, visite o site "Agenda Gotsch", e assista os filmes: http://agendagotsch.com/, realizados por Felipe Pasini e Dayane Andrade.